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sábado, 27 de dezembro de 2008

setor sucroalcooleiro: alto padrão tecnológico e servidão

O texto abaixo faz parte da dissertação de mestrado em Sociologia, de Antonio Barbosa Lúcio, realizada na Universidade Federal da Paraíba, em 2003 p.100-107, com o título "A AÇÃO SINDICAL DOS TRABALHADORES RURAIS A PARTIR DA DÉCADA DE 1970: AS CAMPANHAS SALARIAIS DOS CANAVIEIROS DE ALAGOAS"
Antonio Barbosa Lúcio
O processo de expansão e racionalização do setor sucroalcooleiro, ao mesmo tempo em que atingiu altos padrões tecnológicos, concentrou terras e capitais nas mãos de 16 grupos econômicos e políticos que têm o poder de mando quase absoluto no Estado de Alagoas. A apropriação contínua de terras com conseqüente expropriação de pequenos e médios proprietários criou e aumentou um exército de mão-de-obra farto e barato necessário para compensar a expulsão dos trabalhadores residentes nas fazendas e sua transformação em assalariados temporários. A desarticulação das relações de moradia, dos vínculos de dependência pessoal e das relações de favor, subserviência e clientelismo, não significaram, necessariamente, a inclusão dos expulsos e excluídos ao processo produtivo através do assalariamento. Grande parte desse contingente de trabalhadores passou à condição de bóia-fria, sem nenhum vínculo legal de trabalho com os usineiros e proprietários de terras fornecedores de cana. Dessa forma, antigas relações de servidão, transformaram-se em novas relações de trabalhos servis intermediadas por agenciadores de mão-de-obra.

Os processos de mudança nas relações de trabalho, conforme registrado pela literatura acadêmica, sofreram mudanças rápidas, nas últimas quatro décadas, em diversos setores da atividade sucroalcooleira. Nos anos 1950, a figura do cabo de turma era responsável pelas atividades desenvolvidas na produção, sendo diretamente ligada ao proprietário mediante contrato de trabalho. Nas décadas posteriores, passa a ser funcionário das empresas e subordinado ao poder de mando do usineiro, mas sem contrato formal de trabalho. A este, cabia as tarefas de determinar para os canavieiros a área a ser trabalhada, o registro da produção (apontamento), o acerto de contas com o trabalhador. Tal situação favoreceu aos usineiros, pelo fato de retirar a sua responsabilidade direta com a contratação da força-de-trabalho e conseqüentemente dos encargos trabalhistas (HEREDIA, 1989).


Na década de 1980, entretanto, os trabalhadores canavieiros foram preferencialmente reincorporados ao processo formal de trabalho, tendo em vista o alcance dos índices de produtividade exigidos pelas usinas e para garantir certa oferta de mão-de-obra sob o controle dos usineiros, diante a possibilidade dos trabalhadores buscarem novas alternativas de trabalho nas demais usinas do Norte/Nordeste ou do Sudeste.

A partir do final da década de 1980, numa situação de arrocho salarial, de pesadas tarefas de trabalho e baixa remuneração, o controle da mão-de-obra passou a ser feito por sistemas computadorizados de informações, que exclui os considerados inaptos para as atividades produtivas e ceceia qualquer manifestação de reclames de direitos, impedindo os rebeldes de trabalhar noutras usinas. Ser fichado, ou seja, possuir uma carteira de trabalho assinada para garantir direitos tão perseguidos pelos trabalhadores através das campanhas salariais levadas a efeito sob a direção dos sindicatos, tornou-se um empecilho para a busca de melhores condições de trabalho. Não ser fichado, portanto, significava para os trabalhadores a sua circulação entre usinas, numa situação de arregimentação daqueles considerados mais aptos e mais submissos, entretanto, com certa autonomia para recusar determinadas condições de trabalho e escolher os empregadores que lhes proporcionassem melhores situações de trabalho. Do ponto de vista dos usineiros e mediante a introdução de novas formas de gerenciamento da produção, tal situação era compatível para a implementação de um sistema de arregimentação de mão-de-obra, a partir da disponibilidade de trabalho e da seleção dos trabalhadores considerados mais aptos e possuidores de certos níveis de conhecimento e habilidades exigidos pelas empresas. Convergiam, para tanto, o próprio poder de mando dos usineiros, já que o seu domínio sobre os trabalhadores não se limitava à imposição de horários e tarefas dos trabalhadores à disposição das empresas. Se os usineiros tornaram-se senhores absolutos da economia e da sociedade alagoana, boa parte dos atos dos trabalhadores eram controlados indiretamente por eles, já que os aglomerados urbanos, os quais constitui-se de viveiros de mão-de-obra, são espaços geográficos sob a responsabilidade das usinas, as quais, através de seus prepostos determinam as atividades de seus moradores e possíveis moradores (MELLO, 1990). Sob um longo processo de modernização do setor sucroalcooleiro que levou os seus proprietários à condição de empresários modernos e as suas empresas a níveis de produtividade e competitividade compatíveis com os novos imperativos de mercado sob a égide do capital industrial e financeiro; as relações de servidão entre a casa-grande e senzala, se reproduzem de outra forma. Agora, entre outras questões, os proprietários estão livres de todos os ônus relativos à reprodução da força-de-trabalho. Tanto antes, como agora, a rebeldia dos dominados é controlada por casos exemplares de violência física.


Embora nos finais da década de 1980, a racionalização técnica da produção sucroalcooleira tenha passado a exigir trabalhadores mais qualificados para manusear novos instrumentos agrícolas, novos processos e produtos, os empresários continuaram demandando trabalhadores menos qualificados para certas atividades, redimensionando as relações de trabalho estabelecidas no passado, mantendo a impessoalidade nas funções hierarquizadas da empresa e otimizando as relações de produção. Essa combinação de práticas tradicionais com novos processos tecnológicos e gerenciais ocorreu mesmo nas empresas das regiões dos tabuleiros, que trabalham em níveis tecnológicos mais avançados (NOVAES, 1993). As inovações na produção e as técnicas gerenciais favoreceram a concentração nas atividades desenvolvidas pelas empresas, contribuindo para redução da quantidade da demanda de trabalhadores e a introdução de procedimentos seletivos de arregimentação da força-de-trabalho. Tal racionalização proporcionou alteração nas relações de trabalho, passando a ser prática comum o uso de trabalhadores contratados por períodos estabelecidos pela empresa e conforme as suas necessidades. A adoção do registro dos trabalhadores foi a forma de mantê-los sob o controle dos empresários, estabilizando também o mercado de mão-de-obra e garantindo a maior eficiência no planejamento das atividades dos canaviais. A política das empresas, no entanto, voltou-se para a escolha dos trabalhadores mais aptos para certas atividades. A princípio, há a contratação de elevada quantidade de indivíduos com o objetivo de avaliar a produtividade individual e, em seguida, demitem-se aqueles que não conseguiram atingir as metas estabelecidas pelas usinas. Com isto, não só foi intensificada a forma de exploração, mas também de dominação e exclusão do mercado de trabalho, já que as informações sobre os trabalhadores considerados inadequados eram repassadas a todos os escritórios das empresas do setor sucroalcooleiro, interconectados pela rede de computadores (NOVAES, 1993).


Constatou-se, portanto, um processo de racionalização empresarial que acentua a exploração dos trabalhadores canavieiros e introduz novas formas de dominação mediante o uso de técnicas que direcionam todas as atividades sob o controle de técnicos especialmente contratados para aplicar teorias de gerenciamento com base na racionalização da produção e do trabalho.

PADRÃO (1996), ao estudar esse processo de racionalização numa das usinas do Litoral Sul de Alagoas, constatou as seguintes medidas adotadas: a) contratação de técnicos especializados, tendo como parâmetro a titulação universitária, em substituição aos antigos administradores; b) criação de hierarquização das funções, inclusive entre administradores de cada setor, os quais perdem o poder exclusivo de decisão; c) técnicos de mão-de-obra com a mesma qualificação profissional, e mesma faixa etária e trajetórias similares na empresa; d) controle de todas as atividades informatizadas e supervisionadas pela gerência geral; e) poder de decisão bem delimitado, com hierarquização das atividades em espaço geográfico definido: de um lado gerência geral; de outro, apontadores, cabos e administradores que residiam junto aos trabalhadores nas fazendas, com espaço restrito ao campo e aos escritórios aí localizados. Conforme constata o autor, os técnicos de mão-de-obra circulam entre os diversos ambientes hierarquizados e os cabos e apontadores estão no escalão mais baixo na hierarquia da força-de-trabalho. O cabo é o responsável pelo serviço, pela distribuição e fiscalização do trabalho; já o apontador tem a função de registrar a presença e a produtividade do trabalhador. Mesmo com função inferior na hierarquização da usina, estes recebem salários superiores aos trabalhadores da cana e são imprescindíveis para controlar o processo de trabalho e, detectar indisciplinas entre os trabalhadores sob sua responsabilidade.

Quanto ao processo de recrutamento da mão-de-obra, o antigo empreiteiro foi substituído, modernamente, pelos agenciadores. Estes são trabalhadores com contrato formal de trabalho, entretanto, realizam as tarefas do antigo empreiteiro, porém sem o controle das atividades para as quais foi contratado. Estas ficaram sob o controle da gerência, a qual exige trabalhadores com alto padrão de produtividade. Em geral, o agenciador, atualmente, é um dos responsáveis pela contratação da mão-de-obra, especialmente de outras regiões de Alagoas ou de outros Estados, mas sem ter a decisão sobre o tipo de trabalhador a ser contratado de maneira formal ou informal (NOVAES, 1994; PADRÃO, 1996).

Pelo exposto, o processo de modernização alcançado pelo setor sucroalcooleiro alagoano, tem adotado procedimentos cada vez mais seletivos e excludentes da força-de-trabalho*, enquanto tendência aumentar ainda mais o exército de trabalhadores desempregados e subempregados, pela apropriação contínua de terras, a cada período de expansão do setor favorecido pelo mercado e pela intervenção do Estado. Os primeiros excluídos da força-de-trabalho, em geral, são as mulheres, as crianças, os velhos e aqueles considerados de baixa produtividade. Nessa seleção, o sistema computadorizado de informação permite tanto as usinas de um mesmo grupo econômico, quanto às de outros grupos, controlarem os trabalhadores mais qualificados de acordo com os seus interesses mediante o registro de sua vida pregressa e manter o acompanhamento sistemático desses, expulsando da força-de-trabalho aqueles que tenham questões trabalhistas na Justiça.

Tais formas de dominação combinam-se com extremas formas de exploração, visando o aumento da produtividade, inclusive no corte de cana: adoção de corte de cana rente ao solo (corte baixo, porque aumenta a produtividade pelo teor de sacarose que se concentra na parte da cana próxima ao solo; ponteira bem tirada, ou seja, corte bem na extremidade da cana, em lugar previamente estabelecido para evitar perda de matéria prima e quando a cana já estiver cortada, devem ser colocadas em distancia padrão, limpas e com palhas bem afastadas, para facilitar o trabalho das colheitadeiras). Tais adoções não só expropriam o trabalhador do controle sobre o processo de trabalho como aumenta o seu esforço físico, o que tende a reduzir sua produção. Por seu turno, a sua remuneração, foi reduzida ao não cumprir as tarefas impostas e controladas pelos cabos de turma e apontadores. O medo de ser excluído da força-de-trabalho, por ser considerado de baixa produtividade e, a própria redução do salário relacionada ao não cumprimento de tarefas estafantes, são fatores entre outros, que levaram os trabalhadores canavieiros a resistir a tais inovações. A necessidade de sobreviver, o medo de perder o posto de trabalho, a vigília dos novos feitores de engenho sobre todos os seus movimentos, a concorrência e o comportamento servil dos trabalhadores vindos de outras regiões, são os modernos ingredientes que dão os novos contornos da sombra do opressor, que como disse Paulo Freire (1987), hospeda-se na sombra desses oprimidos. Sombra essa que se projeta a partir dos capatazes, cabos de turmas e apontadores que, para assegurarem os seus postos, têm de encarnar com mais dureza ainda, a dureza do patrão. Socializados para obedecer ou morrer, os trabalhadores canavieiros de Alagoas, torna-se uma espécie de semoventes que lembram os seus antepassados das senzalas. Entre a morte matada preferem a morte morrida num processo de exploração e dominação que lhes obriga a viver abaixo das condições biologicamente suportáveis de sobrevivência.


Foi nessas circunstâncias histórico-sociais configuradas por um poder econômico e político de uma classe proprietária de terras e de capital, poder esse que perpassa todo o tecido social desde os canaviais até o aparelho político e técnico-burocrático do Estado de Alagoas, que se desenvolveram as Campanhas Salariais dos canavieiros, de forma tardia com relação aos outros Estados nordestinos, devido às adversidades já elencadas e analisadas anteriormente. Foi nessa realidade marcada pela impunidade e a violência que se constituiu e se manteve uma rede de Sindicatos de Trabalhadores Rurais coordenadas pela FETAG/AL. Se essa rede de sindicatos teve que se adequar às adversidades do meio governado por padrões de relações sociais caracterizados pelo código de direito e de ética privados dos que dominam e que passaram a ser conhecidos no movimento sindical com a lei do patrão, era de se esperar significativas resistências de certas lideranças para se envolver nas campanhas salariais ocorridas a partir de 1986 e que essas Campanhas, mesmo numa conjuntura de democratização da sociedade brasileira, só pudessem ser possíveis com o apoio da CONTAG e das Federações de Estados como Pernambuco, que já tinham uma certa experiência acumulada nesse tipo de luta, além do apoio de entidades sindicais de trabalhadores urbanos e de organizações da sociedade civil, como será visto no capítulo subseqüente.



* Exemplo dessa exclusão é o caso do Grupo Carlos Lyra que há dez anos tinha 3,5 mil trabalhadores, dos quais 3 mil eram cortadores de cana. Em 2001 este número era inferior a mil cortadores. Fonte: Jornal cana, fev/2001.

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