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sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

A agricultura que nos coube; a riqueza que nos concederam e; o poder que nos foi negado



Foto: Assentamento Dom Hélder Câmara/Núcleo Maravilha
/Girau do Ponciano/AL
Foto: Elenice Temóteo de Almeira/Arquivo NEASR-2008




A foto a cima, pode representar a seca nordestina, a manutenção das cercas políticas que fizeram  Fabiano do romance de Graciliano Ramos viver como constante migrante, sem alternativas diante os interesses capitalistas.  


Antonio Barbosa Lúcio

“Os meninos eram uns brutos, como o pai. Quando crescessem, guardariam as reses de um patrão invisível, seriam pisados, maltratados, machucados por um soldado amarelo (RAMOS, 1938:20)”.










O texto acima, uma reflexão do personagem Fabiano, no livro “vidas secas” do escritor alagoano Graciliano Ramos, pode nos ajudar a pensar, 72 anos depois de escrito, a vida do brasileiro, do nordestino, do alagoano empobrecido. Muito tempo se passou. Mudanças ocorreram. De um Brasil essencialmente agrário, com uma industrialização ainda incipiente para os padrões modernos, na década de 1930, período que Graciliano escreve vidas secas, para um país que se desenvolveu a seu modo: industrialização nos grandes centros urbanos; revolução verde, ampliando o agronegócio e, transformando o camponês em trabalhador assalariado sob a lógica capitalista de produção; êxodo rural, convertendo a população camponesa em proletários urbanos; em fim, o capital teria logrado êxito, também em terras tupiniquins. Sua força estaria presente, no Brasil Colônia e Império, mantendo a concentração de terras sob o controle de poucos; a primeira república garantia a continuidade desse sistema excludente de acesso à terra aos empobrecidos camponeses; o controle estatal, mas do que a chamada “livre concorrência” ou a “liberdade de mercado” foi o suporte que as elites econômicas encontraram para a manutenção das relações de subserviência. Coube ao Estado republicano da primeira fase, manter a hegemonia: primeiro com a falta de regulamentação das atividades patronais e a continuidade do “deixa fazer” proposto pelo capitalista. Assim, a necessidade de regular as atividades laborais dos trabalhadores passa a existir, apenas na segunda fase republicana. A elite econômica, não mais deixaria sem regular oficialmente as atividades dos trabalhadores. A chamada Era Vargas, regula as atividades sindicais, exclui os trabalhadores assalariados do campo, limitando, pela ausência de regras qualquer possibilidade de direitos. Entregues a própria sorte, vêem-se controlados pelo poder patronal. Assim, o personagem Fabiano, imortalizado por Gracialiano Ramos, poderia antevê tanto seu destino, como o destino de seus filhos. Estes, “Quando crescessem, guardariam as reses de um patrão invisível, seriam pisados, maltratados, machucados por um soldado amarelo.” 

Os períodos subsequentes, puderam confirmar as palavras pretensamente proferidas pelo personagem Fabiano: trabalhadores camponeses foram sumariamente aniquilados. Ligas Camponesas, sindicatos rurais, trabalhadores sem terras... repetiam a “sina” de Fabiano e de seus filhos. Continuavam, diante um patrão invisível, a serem pisados, maltratados, machucados por um soldado amarelo, por um Estado omisso diante o grito dos excluídos, mas atuante e sorrateiro, diante os desejos cada vez maiores, dos latifundiários. Assim, a chamada Revolução Verde, colocou o país na agente política internacional, promoveu o desenvolvimento tecnológico, estabeleceu técnicas modernas de controle do trabalho. O país avançou de tal forma, que poderíamos dizer que o mundo não poderia passar sem a força do agronegócio brasileiro, sem a produção agrícola que tal postura capitalista no campo desencadearia.

Se tal afirmação pode ser considerada verdadeira, em contrapartida, os fabianos modernos se reproduzem e, os “soldados amarelos” representando a força opressora estatal persistem em prendê-los, massacrá-los, maltratá-los, mesmo que sem motivo aparente ou apenas pelo fato de que almejam uma sobrevivência digna diante as novas formas modernas de exclusão social. A reprodução dos fabianos passa a ser uma necessidade do capitalismo: a continuidade do sistema de trabalho que excluem direitos e sobram deveres. O certo é que o capital pôs a nu as relações de exploração no campo. A crise de 2008 deixou clara a falácia do fim do Estado, do livre mercado ou do fim da História. Mas, o capital se reorganizou, encontrou formas de recriar e aprofundar as relações de exploração e, com a crise, passou a lucrar. Se alguns capitalistas “sofreram” com as medidas tomadas, isso ocorreu, pela própria necessidade do capital de se reoganizar, de redimensionar suas relações e, ao mesmo tempo, assegurar sua permanência enquanto poder hegemônico.


Aos fabianos sem terra, sem salário, sem renda, sem comida, sem trabalho, juntaram-se os pequenos proprietários de terras, vítimas de juros exorbitantes, considerados os maiores do mundo. Os juros do trabalho foram sorrateiramente destruídos, aniquilados, trocados por migalhas, esmolas governamentais. Assim, a crise do capitalismo, foi reeditada para os trabalhadores. Os que produzem, sofrem as consequências, vêem os salários sendo reduzidos em seu poder de compra; não conseguem acesso a tecnologias que possam aumentar sua competitividade. Os pequenos produtores rurais tendem a submeter seu trabalho aos ditames do poder industrial. Este impõe o valor das mercadorias. O setor financeiro estabelece quem pode ter acesso ao crédito. O Estado, tão criticado por sua ingerência na economia, passa a ser o grande mentor, distribuído recursos públicos, sob a máscara da proteção do emprego, aos grandes capitalistas. Estes, tanto o financeiro, o industrial e o agrário, se unem para centrar o trabalho do trabalhador no necessário para a sua reprodução, mesmo que para tanto, cobrem várias vezes do trabalhador a tarefa de subsidiar os seus interesses. Cobram, tanto no desenvolvimento do trabalho propriamente dito, como através de recursos estatais, largamente distribuídos para “salvar o país da crise econômica”. A união entre os capitais, também estaria centrada na reprodução do trabalhador, figura emblemática, mas necessária a continuidade das relações de produção. Não poderiam de correr o risco de apenas usar o aparelho repressor estatal, assim, utilizam outras formas: a distribuição de parte do que foi confiscado pelo poder estatal dentre aqueles em situação de risco de extinção, os chamados em estado de extrema pobreza. A fórmula simples visava não apenas manter os trabalhadores vivos, mas vivos e calados. Como Fabiano do romance de Graciliano Ramos, amedrontado diante a miséria, o trabalhador moderno deverá agradecer seu algós por poder conseguir se manter vivo e garantir a continuidade de seus filhos nesse sistema opressor.

O modelo da agricultura brasileira centrou seus esforços na ampliação do agronegócio: concentrou recursos; destinou verbas públicas ao capital agrário-exportador; consolidou as exportações de matérias-primas; privilegiou, através de empresas estatais, inclusive Universidades, pesquisas que aumentassem a produção e a produtividade agrícola na produção de soja, cana-de-açúcar, etc., e na pecuária, com a criação e exportação de carne de bovinos. Tais medidas, alavancaram o setor e, paralelamente, sem a definição clara sobre como os chamados, pelos órgãos estatais, agricultores familiares, responsáveis por cerca de 70% da produção alimentar básica destinada a população brasileira, iriam se sobressair diante a voraz  e contínua força industrial diante a determinação dos preços dos insumos e implementos agrícolas. Assim a agricultura que nos coube, foi aquela destinada especialmente a áreas agricultáveis que o grande capital não almeja desenvolver atividades; aquela que demandaria grande quantidade de mão-de-obra e, dificultasse o acesso as máquinas agrícolas; aquela centrada na produção de alimentos e que, por isso mesmo, diante a pressão da população urbana empobrecida, carente de alimentos e sem poder de compra, tendo em vista o arrocho salarial do setor industrial urbano, tenderia a pressionar para que tais alimentos fossem disponibilizados com preços reduzidos. Este mesmo setor pressiona, sem reduzir seus lucros, para que alimentos sejam produzidos, mas sem antes, estabelecer as condições de produção e, a própria produtividade. Tal situação, também favorece para que os setores produtivos chamados familiares reprodução as relações capitalistas em suas pequenas propriedade: primeiro proletarizando-se e, paralelamente, ampliando as relações de apropriação do trabalho aos assalariados rurais.

A riqueza que nos coube ficou concentrada na possibilidade de, ao mesmo tempo em que os camponeses são responsáveis pela maioria dos produtos destinados a alimentação da população, representando como dito acima, 70% da produção de alimentos, possuir riquezas sem ter acesso a elas, ou seja, será preciso trocar os seus produtos por outros industrializados, beneficiados  por outros trabalhadores e pelo poder da maquinaria. Assim, como diria Marx, nos manuscritos econômicos e filosóficos “o trabalhador recebe apenas a parte mínima e absolutamente indispensável do produto”. Em última instância, portanto, temos apenas, níveis diferenciados de pobreza e exploração do camponês quer como assalariado familiar, encoberto sob o véu de agricultor familiar e, os assalariados do campo em geral. Estes seriam o último elo da corrente engendrada nas relações capitalistas para o campo.

Se, como diria Marx, citado acima, na origem, todo trabalho pertence ao trabalhador, em sua essência, esse trabalho passa a ser voltado, para manter os interesses do capital. Assim, as crises econômicas, são também, crise dos próprios valores que originam o capital e, ao mesmo tempo, difusão e ampliação do processo de exploração do trabalho assalariado. Deixamos claro, portanto, que no campo, quer o familiar quer o assalariado, trabalho sob a lógica capitalista de produção, em última instância, reduz o trabalhador a condição de miserabilidade, exclusão social, empobrecimento crescente e mistificação das relações de produção. Assim, os chamados produtores familiares, apenas subsistem enquanto tal, por uma necessidade do capital agrário-exportador. Resistir, portanto, seria a única forma de se sobressair diante as atrocidades cometidas em nome do processo produtivo. A resistência, portanto, estaria aquém dos moldes atuais de acesso a terra. Deveria, portanto, garantir a continuidade de práticas que levem em consideração o acesso, não apenas a terra, mas, as inúmeras formas de alavancar a produção, geralmente controladas pelo capital, como por exemplo, o acesso as tecnologias e o controle da cadeia produtiva. Essa modalidade de poder, supostamente atribuído aos trabalhadores assalariados que possui como prerrogativa a suposta a chamada “livre iniciativa” ou a suposta liberdade que existiria no processo produtivo que preconiza que o trabalho teria tanto a livre iniciativa de produzir ou de escolha com quem deve ou deseja trabalhar, estaria na essência da mistificação capitalista.

O camponês, portanto, precisaria resgatar senão efetivamente dar início, a uma outra alternativa frente as investidas frequentimente  impulsionadas pelo Estado e, sem muita reflexão, sendo encampadas por parcelas dos trabalhadores via sindicatos ou organizações não governamentais. Respaldam a estrutura do poder. Poder este que, como disse acima, é a corporificação das políticas excludentes. Assim, o assistencialismo agrário, repassados como benefícios, concessões, como se os camponeses necessitassem da caridade do capital para subsistir. Nota-se, portanto, a necessidade imediata de confronto direto com os setores que organizam tais políticas excludentes, visando o resgate da autonomia camponesa frente os interesses imediatos do capital. O conflito já foi posto pelo capital ao limitar, sob seu controle, a distribuição de mercadorias, que pode ser apresentada da seguinte forma: retormar o acesso ao crédito sob o controle dos trabalhadores; redimensionar o papel das Universidades produtoras de conhecimento para atender a demanda dos produtores de alimentos básicos; resgate das tecnologias existentes, centrando-as sob o controle dos camponeses, etc.. Assim, o aparelho tecnológico, o domínio do conhecimento e sua aplicabilidade, necessitam ser redimensionados para além dos interesses das elites dominantes. Se com isso, teríamos mudanças na ordem capitalista, não podemos ter a clareza dos resultados, mas com certeza, a falácia do agronegócio como a principal forma de condução do desenvolvimento produtivo brasileiro no campo, seria desmistificada.

Assim, as medidas tomadas para conter as crises cíclicas do capital, são apenas paliativos visando sanar dificuldades imediatistas. Os bilhões colocados, pelo Estado Capitalista a disposição do capital para sanar seus próprios interesses, coloca em xeque o atual modelo econômico. Mas, estariam postas as condições de superação, ainda não necessariamente do capitalismo, mas das relações de subserviências extremas. O problema é que não se soube resgatar a agricultura que o país precisa; não se verificou que não cabe ao capitalista propiciar riquezas aos trabalhadores, pois estes, já as possuem(apenas não sabem disso) e, quando os camponeses reconhecerem que se o poder econômico e político que foi negado, também não poderia ter ocorrido se fosse reconhecido que todo o poder do capital é, de certa forma, dado ou arrancado do trabalhador.